GRUPO CORPO: O PROCESSO CRIATIVO, A MENTE E O CORAÇÃO DO CORPO - DE BELO HORIZONTE-BRASIL PARA O MUNDO

Vem Pra NY! — Grupo Corpo no BAM

Bach (1996) | José Luiz Pederneiras


GRUPO CORPO

Quando se vê o GRUPO CORPO dançando, é como se as questões do trânsito entre a natureza e a cultura estivessem sendo bem respondidas.
São os diversos Brasis, o passado e o futuro, o erudito e o popular, a herança estrangeira e a cor local, o urbano e o suburbano, tudo ao mesmo tempo sendo resolvido como arte. Arte brasileira. Arte do mundo.
Helena Katz


O PROCESSO CRIATIVO,

A MENTE E O CORAÇÃO DO CORPO

Por Iara Biderman
No princípio é a música. E o quadril. Assim começam o processo de criação e os movimentos de origem inconfundível. Eles vêm do Corpo, a companhia que tomou como nome a estrutura física humana para – nestes 40 anos – criar uma linguagem única de dançar estruturas corporais, musicais, visuais, motoras, emocionais, brasileiras e universais.
“Minha ideia é fazer com que música e dança se tornem uma coisa só. Às vezes eu consigo”, diz Rodrigo Pederneiras, há 35 anos o nome e o sobrenome das coreografias do Grupo Corpo. Segundo Paulo Pederneiras, diretor artístico da companhia mineira, esse foi o foco do trabalho de Rodrigo desde que ele se tornou o coreógrafo residente do coletivo em 1981. “Primeiro convidamos o músico. Damos a ele liberdade total e não sugerimos referência alguma, a não ser a duração da trilha sonora, cerca de 40 minutos. Preferimos ser influenciados a influenciar. É a partir da música que começamos a criar. Não temos uma ideia a priori”, conta Paulo.
A primeira fase do Grupo Corpo – entre 1975 e 1980 – foi marcada por coreografias narrativas ainda muito fundamentadas no balé clássico. A autonomia de criação da companhia veio justamente quando Rodrigo passou a comandar definitivamente o corpo de bailarinos. Nesse período, apesar de ele ouvir ainda muita música clássica, o que se reflete na trilha sonora dos espetáculos – depois de Último Trem (1980), durante praticamente uma década o grupo se valeu de composições de grandes músicos, como Heitor Villa-Lobos, Robert Schumann e Frédéric Chopin –, suas pesquisas já avançavam em direção às criações de compositores brasileiros que combinavam referências populares e eruditas para formar uma música brasileira contemporânea.
“Eu ouvia falar em dança brasileira em relação aos temas, às músicas, mas não à forma de dançar. A década de 1980 foi um grande aprendizado nesse sentido”, comenta o coreógrafo. Essa provocação fez com que a companhia iniciasse a construção de um vocabulário próprio – no que diz respeito à textura, à cor e ao cheiro do Brasil –, muito embora, como Rodrigo enfatiza, as questões que mais tarde formariam realmente a identidade do Corpo já estivessem presentes desde a primeira montagem.
Inês Bogéa, atual diretora da São Paulo Companhia de Dança e ex-bailarina da companhia mineira, exemplifica: “A trilha sonora original de um compositor brasileiro de ponta; a união dos vários elementos, todos em busca de uma unidade para a obra; a dramaturgia calcada na música; o arrojo e a determinação de dialogar com o seu tempo de forma direta e sem concessão; tudo isso já estava em Maria Maria [1976], por exemplo”. Inês dançou no grupo durante 12 anos – de 1989 a 2001, ano em que organizou o livro Oito ou Nove Ensaios sobre o Grupo Corpo (Cosac Naify).

Paulo Pederneiras é diretor geral e artístico do Grupo Corpo. Também é o responsável pela luz dos espetáculos e desde o espetáculo Bach (1996) participa da criação dos cenários.

A CRIAÇÃO DA COREOGRAFIA

LINHA DO EQUADOR

Há, no Grupo Corpo, um jeito muito particular de os bailarinos se movimentarem, o qual, como afirma Paulo, “não se parece com o jeito de nenhuma outra companhia”. “Em cima de cada nota o Rodrigo cria um movimento. É como se os bailarinos fossem instrumentos”, completa Cassi Abranches, ex-bailarina do grupo e para quem Rodrigo pretende passar o bastão.
Ela assinou o espetáculo Suíte Branca, que, ao lado de Dança Sinfônica, comandado por Rodrigo, comemora os 40 anos do grupo. A partir de uma observação atenta dos espetáculos é possível perceber que a completa harmonia entre dança e música levou a uma forma pouco usual de contar os tempos e os contratempos. “É uma contagem difícil. O que os outros fariam em dois movimentos, o Rodrigo faz em quatro – a agilidade do bailarino tem de ser outra. E ainda tem de ter a ginga. No momento em que tudo se coordena a coisa sai”, diz Cassi.
A ginga, que pode parecer um movimento óbvio, na verdade no Corpo é resultado de um processo elaborado. Segundo Rodrigo, foi fundamental para seu processo criativo perceber que o brasileiro tem um jeito sensual particular. “Comecei a pensar como seria trabalhar com o movimento partindo da bacia. Todo o corpo responde a partir disso”, conta o coreógrafo, que ao mesmo tempo faz a ressalva de que esse “toque sensual” pode ser um risco. “Quando você fala que tudo começa na bacia, pensam que é rebolado. É mil vezes mais que isso. Bacia é a linha do Equador do corpo. Quando ela mexe, o resto do corpo responde.”
A companhia é conhecida por mesclar o popular e o erudito, o que realmente lhe confere movimentos muito característicos. No entanto, em uma conversa com Rodrigo, é   possível perceber que esse foi apenas o início: “Eu fui pegando as danças populares brasileiras e mesclando-as com a técnica clássica, e misturando o clássico com o contemporâneo. Depois, as técnicas foram sumindo e as formas foram se diluindo, dando lugar à dinâmica, em que penso mais na intenção do movimento do que na forma”, conta.
Segundo a ex-bailarina Bogéa, Rodrigo é capaz de traduzir visualmente a partitura musical com seu vocabulário, encadeando as frases de movimento de maneira que os impulsos, o ritmo e a dinâmica da música sejam percebidos no corpo de cada intérprete.
“Ele se vale da gravidade, mas desafia os limites pela possibilidade de articulação das diferentes dinâmicas em distintas partes do corpo.”
A também ex-bailarina Abranches chama a atenção para outra característica marcante da companhia: os deslocamentos e os desenhos que os bailarinos realizam no espaço. “Ninguém coreografa como o Rodrigo. Sob o comando dele, o palco está sempre pulsando, cheio, torna-se um grande jogo de xadrez”, comenta. Rodrigo emenda e explica que isso acontece porque ele   nunca vê uma cena separada da outra. “Nunca é apenas um caminhar ou correr. É uma linha contínua, frases coreográficas que se complementam e criam esse desenho espacial se fundindo umas nas outras”, explica o coreógrafo.

Rodrigo Pederneiras (coreógrafo do Grupo Corpo), Cassi Abranches (coreógrafa) e Paulo Pederneiras (diretor artístico do Grupo Corpo)

A EMOÇÃO

“Vejo muitos duos que são lindos, mas falta humanização. Tem de ter sexo, amor, ódio. É do que sinto falta na dança contemporânea. Tento humanizar. Algumas vezes acerto”, afirma Rodrigo. Para o público, esse acerto vem se repetindo e se multiplicando nestes 40 anos. Mas Rodrigo insiste que mexer com a emoção é raríssimo e efêmero, assim como a dança.
O que vai tocar as pessoas, segundo o coreógrafo, não é a beleza, no sentido da precisão. “O movimento pode ser feito de milhões de formas: brusco, cortado etc. Mas é a escolha da dinâmica correta para aquele tema musical ou para aquela ideia que vai fazer com que o público se emocione. E quando isso acontece é muito legal”, ressalta.
E acontece por uma combinação única de todos os elementos que compõem o espetáculo. “O que se vê na cena é resultado de uma decantação de ideias que perpassam todas as áreas do grupo, da produção à criação”, afirma Bogéa. Paulo é quem coordena esse arremate. “Minha função maior é conceituar a obra, dar um título e conseguir uma unidade entre todas as áreas: coreografia, música, figurino e cenário. E daí vem o espetáculo”, diz.
É desse processo que Paulo mais gosta. “Eu tenho quase o dever de entender por onde o processo criativo do Rodrigo está indo. Ele não tem uma ideia pressuposta, mas é claro que algum sentido a obra tem. Para mim, o mais custoso é conseguir ver nesse processo um conceito que reúna tudo para dar um direcionamento”, afirma o diretor artístico. A partir da multiplicidade de elementos, torna-se possível filtrar a estética própria do Corpo: “Minha maneira de trabalhar é enxugar, dar limpeza à parte visual, não atrapalhar com efeitos especiais”, diz Paulo. A experiência proporcionada pelo equilíbrio de todos esses elementos – música, dança, luz, cenário, figurino – “desafia a ideia do que é ser brasileiro, sem exotismo ou caricatura, transformando certas matérias brutas do Brasil em dança”, aponta Bogéa.
“Hoje nem penso nisso, em criar uma dança brasileira; ela já está incorporada inclusive no corpo dos bailarinos. A brasilidade e a universalidade estão na dança”, afirma Rodrigo. Ou, como disse o poeta e teórico modernista Mário de Andrade em uma carta ao compositor Camargo Guarnieri, em 1934, lembrada por Bogéa: “O papel do artista criador não é figurar uma nacionalidade, mas transfigurá-la”.
Iara Biederman é jornalista, autora do blog Deu Baile e colaboradora da Folha de S.Paulo. No mesmo jornal, foi repórter de cultura, com ênfase em dança e teatro. Formada em jornalismo pela PUC/SP, especializou-se em história da arte e análise crítica do jornalismo na Universidade George Washington, Estados Unidos, e na Universidade de Cardiff, Reino Unido.


A TRILHA SONORA

A MÚSICA DO MOVIMENTO

Por José Miguel Wisnik
Desde os anos 1990, o Grupo Corpo vem encomendando de compositores da música popular brasileira as trilhas originais para seus espetáculos. Marco Antonio Guimarães, Arnaldo Antunes, Tom Zé, João Bosco, + 2, Caetano, Lenine, Samuel Rosa fizeram, para dança, experiências que certamente não fariam no rumo central de suas carreiras. Uma trilha de mais de 40 minutos, toda voltada para a cena dançante, predominantemente instrumental, e guiada por um fio condutor, é muito diferente do costumeiro álbum de canções a que quase todos estão acostumados. Atraindo-os para esse campo inabitual, o Grupo Corpo acumula já uma grande contribuição para a música brasileira contemporânea.
Tive a sorte de participar desse processo desde 1993, quando fui convidado pelo diretor artístico Paulo Pederneiras para fazer a música de “Nazareth”. Depois da franca mineiridade dos seus primórdios, com o enorme sucesso de “Maria Maria”, para o qual Milton Nascimento e Fernando Brant fizeram canções célebres, o Grupo tinha passado por um período probatório e autoimposto de convívio com a música de concerto europeia (Chopin, Haydn, Elgar), durante o qual assimilara as técnicas de dança clássicas. Feito isso, parecia pronto para enveredar decididamente pela criação de uma linguagem de dança brasileira contemporânea, dando continuidade à perspectiva aberta em 1992 pelo espetáculo “21”, com música de Marco Antonio Guimarães interpretada pelo Uakti.
A proposta de criar variações sobre a música de Ernesto Nazareth me pareceu afinada com a trajetória deles e com a minha. O compositor carioca era o pianeiro transcendental que compunha polcas amaxixadas de olho na música clássica, como se dentro delas existissem sonatas e prelúdios querendo desabrochar. O trânsito em surdina entre o clássico e o popular em Nazareth ia ao encontro do caminho de ida e volta que o Grupo Corpo também vinha fazendo entre a música europeia de concerto e a música brasileira. Me lembrei do personagem de Machado de Assis, o Pestana de “Um homem célebre”, dividido entre o desejo de pertencer ao panteão imortal da música de concerto e o sucesso galopante de suas polcas. Apliquei às músicas de Nazareth a antiga técnica polifônica dos espelhos melódicos, tocando-as de trás pra diante, às avessas, com o que elas não perdiam sua elegância e seu encanto inconfundível, convidando para dançar a dança de “cisne e cabrita” a que se refere outro maravilhoso conto de Machado, “Terpsícore” (não por acaso a musa da dança).
No trabalho do Grupo Corpo a música tem o privilégio de ser o disparador do espetáculo todo: a partir dela nascem a coreografia, o cenário, a luz, os figurinos. Talvez não se tenha ainda a consciência suficiente de que esse excepcional grupo de dança brasileira, de alcance mundial, resulta da junção de talentos dos dois irmãos Pederneiras – Rodrigo, o coreógrafo, e Paulo, o diretor artístico (pondo ênfase na conjunção “e”). Feita a música, ela passa por um processo de transfiguração em movimentos corpóreos (nós, os músicos, temos então a felicidade única de ver a música acontecer literalmente aos nossos olhos) e de visualização inteligente e também transfiguradora do espaço cênico, que integra e multiplica o que se dança.
Graças a isso, todos os estímulos que vão sendo jogados pela música são respondidos e correspondidos pelos múltiplos planos do espetáculo, garantidos por uma equipe técnica, humana, por um corpo de bailarinos cada vez melhores como conjunto, nada disso deixando de ser obra da excepcional inteligência estratégica que vem da direção. Quando estive com eles em Austin, a convite da Universidade do Texas, por exemplo, Joe Randel, que fazia a ponte entre a programação cultural e a universidade, dizia que raramente um grupo de dança, entre todos os que passam por lá, e são os principais, oferecia tantos elementos de interesse em todos os níveis da produção e da concepção do espetáculo. Assim como os espelhos machadianos aplicados à música de Nazareth, também as ideias embutidas na especulação sertaneja do “Parabelo”, para o qual fomos convidados Tom Zé e eu, a conversão do Big Bang em Fla-Flu, que disparou o “Onqotô”, música feita com Caetano Veloso, e as canções medievais galego-portuguesas, que fiz com Carlos Nuñez para “Sem mim”, foram incorporados e transformados em dança e luz, espaço e cor. O que havia de potencialmente excessivo nas intenções literárias subjacentes à música adquiria a naturalidade surpreendente dos desenhos dançantes e dos espaços não poucas vezes extasiantes, como a taba cósmica – o buraco negro penetrável do “Onqotô” – e a rede que pesca os amantes e o nada, em “Sem mim”.
O tom com que tudo isso se faz, em todas as fases do trabalho, é mineiro – sem empostação e sem pose. Logo na entrada da sede do Grupo Corpo em Belo Horizonte há, não uma sala de visitas ou um escritório, mas um espaço para o cafezinho, o bolinho de fubá e o pão de queijo. Acho que é ali que eles testam o convidado, para ver se não é enjoado. Se for, não passa a próxima porta. [texto originalmente publicado no jornal O Globo, caderno Prosa e Verso, do dia 5 de setembro de 2015.]
José Miguel Wisnik é músico, compositor e ensaísta, autor de “O som e o sentido”, entre outros, e compôs trilhas de espetáculos do Grupo Corpo, como “Nazareth” e “Sem mim”. O Grupo Corpo apresenta “Suíte branca” e “Dança sinfônica” no Teatro Municipal até segunda-feira.
[texto originalmente publicado no jornal O Globo, caderno Prosa e Verso, do dia 5 de setembro de 2015.]

O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA TRILHA SONORA

Arnaldo Antunes (músico, poeta e compositor)


OCUPAÇÃO


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